... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 47 - Novembro 2012

Editorial

«Morrer é só não ser visto.»
Fernando Pessoa, in A Morte é Um Caminho
TUDA Novembro, em luto, novamente! Mórbido é não falar da morte, enigma maior da vida humana. Se é complexo lidar com perdas, mais complexo ainda lidar com a morte. De todas as separações, a morte é a mais temida, seja pela ansiedade da separação, ou pelo vínculo e saudade da pessoa perdida.

Na medida em que a consciência da morte não pode ser evitada, ela não deveria ser vista como um inimigo a vencer, mas sim como parte integral da vida que dá um sentido a existência humana, independentemente de crenças. Falar de morte dos outros conduz inevitavelmente cada um à sua própria finitude, e por mais que se abomine-a, é o grande momento da vida do ser humano. "Na morte completa-se a vida. Não existe viagem sem chegada. Não existe caminho sem destino. Não existe vida sem morte. Não se refletindo sobre o mistério da morte, não se reflete sobre o mistério da vida." (Philippe Ariès)

Neste Halloween, Finados, ou como quer que chamem, TUDA decidiu comemorar a morte ao invés de condoê-la... E TUDA vem com tudo e (quase) todos novamente, explorando um pouco esse sentimento na poesia de Drummond, e nos temas visuais, onde possível. Além dos já esperados pindaíbicos - Arnaldo Xavier, Souzalopes, Roniwalter Jatobá, José Geraldo de Barros Martins e este mesmo que vos escreve - TUDA traz muita gente boa, como sempre: confiram na Dívida Interna!

QG de TUDA Novembro

É isso aí, companheiros. Na suja LabUTA da monotonia, que não bastassem as perdas do dia-a-dia, nao bastassem o apego e o desapego, a ausência e a presença, ainda nessas horas manifestam-se ao redor os lutos atrasado, crônico, platônico e mascarado... e facilitar esses lutos é abrir-se a sentimentos e aceitar perdas posteriores. Fui...

Asyno Eduardo Miranda
o (auto-proclamado) editor
deste porto quasiseguro de Pyndorama
oje, terçeirº dia do dezº primeirº mez
d este Anno Domini de MMXII

Dívida Interna

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Alberto D’Assumpção, Arnaldo Xavier, Carla Andrade, Cesar Cruz, Dorival Fontana, Edson Bueno de Camargo, Eduardo Miranda, Gregório de Matos, Gustavo Lima Fernandes, Hamilton Faria, José de Almada-Negreiros, José de Guimarães, José Geraldo de Barros Martins, José Inácio Vieira de Melo, José Miranda Filho, Maria do Rosário Pedreira`, Maria Helena Vieira da Silva, Marina Alexiou, Nadir Afonso, Noé Sendas, Paulo Cancela de Abreu, Pedro Du Bois, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Santiago de Novais, Saulo Silveira, Sofia Barreto, Souzalopes, William Bouguereau e Yuri Rodrigues.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Motherhood by Chidi Okoye

(...)

33
PeixxXxXxe

34

Çol
Luz
Partida

35

Fl*r
Fl*r
Fl*r

36

verbo’azul
somluço
negro

(...)

Poesia - Souzalopes


Manifesto do Partido Comunista
em cordel
Anônimo de Souza

3 – Literatura Socialista e Comunista

1 – O socialismo reacionário


(...)

c) O socialismo alemão ou o “verdadeiro socialismo”


No velho século dezoito,
Filósofos da Alemanha,
Imitaram os franceses
Sem porém a mesma sanha:
Deixaram a fala macia
Como teia de aranha.


A burguesia alemã
Contra o feudo e a realeza,
Se chamava liberal,
Quase teve a grandeza:
Gritou socialismo
Nos ouvidos da nobreza.


Então os governos tiranos
Assustaram a burguesia.
Aqueles socialistas
A tudo destruiria.
Aqueles socialistas
Eram praga ou epidemia.


Esses pequenos burgueses,
Recuaram para sempre,
Daquilo que quer a gente.
Eles não querem igualdade,
Querem cargos de gerente.

(...)

Poesia - Plínio de Aguiar

Foto de Tatiana Gerus (Tatters)


Pitangueira

Branco, o muro
Entre o corpo e nuvens
Quase imóveis.
Antes do muro
Está a pitangueira.
Abelhas miúdas sugam seus frutos.
Sem ânimo para coletar rubis
Ao meio-dia
Sinto que muro não é nada, tudo é o futuro.

Plínio de Aguiar
Cipó, janeiro 2012

Poesia - Hamilton Faria

Adrienne Seed - Veil of Tears, oil on canvas, 1986

Véu
A Helena Kolody

persigo a utopia desejável mundo transparente
mas se pego as asas do dia e voo sou real
mais real que o véu que me separa do fogo e da lágrima

Céus de todas as Eras          o limite é o sonho

Poesia - Celso de Alencar

Lendas Urbanas: Mulher de Branco, de Rafael Menicucci, 2012
A Mulher Da Rua 15

Foi no domingo pela manhã,
onde velhos pescadores e meninos
entoavam hinos de oceanos.
Uma mulher estranha, louca,
loira e esguia, com vestido brilhante,
como aqueles usados pelas cantoras de músicas sacras
saiu de casa, como um vulto matutino,
transportando uma xícara na mão
três pãezinhos e uma fatia
de queijo fresco num prato.
Nos seus pés não havia sapatos.
Atravessou a rua de pedras antigas
atravessou o rio numa barca longa e verde
e voou com a cabeça pura e perfumada
tombada, para sempre,
para o interior da mão esquerda.
Partiu só, deixando as saias floridas
e as blusas amarelas,
presas no varal, sujas de sangue.

Poesia - Santiago de Novais

Pavane Pour Une Infante Defunte
(cuidem mais das crianças por favor / care more over the children please)

Imagem enviada pelo autor

quandoocarroesmagouobracinhodela espirrou poemavermelho
quandoocarrorasgouablusa arrastandooopedaçoss de pulllmmão saiu umversotriste
quandodoisdentinhosvoaramporsobreoasfaltocaindonomeiofio escorrrrrrrrreu sonetodor
quandoparoudemexerocorpinhodilacerado e o moçobaiano
gritouPára! nem rima

Poesia - Dorival Fontana

Pedestrian Art, by Roadsworth

Urbano

As faixas brancas
Destinadas aos pedestres,
Garantem ao cidadão
O pleno direito
De morrer em segurança.

As placas regulamentam,
O guarda (des) orienta,
As luzes indicam,
As leis comandam
O caótico em trânsito.

Pare!
Siga!
Atenção!
Cuidado!
Com o caminhãoooo...

Poesia - Pedro Du Bois

James Day - Life Cycle, Acrylic on board, 2011
Hábil

Hábil, rabisco verdades: levo o pão
sob o braço, comida faltante na mesa
do pai. Ofereço minha habilidade
desferida em tiros: atiro a esmo
nos cadáveres deixados. Vou
pelo caminho acrescentado
(no bolero reencontro os passos)
onde me encontro na habilidade
recíproca do renascimento.

(Pedro Du Bois, inédito)

Crônica - Roniwalter Jatobá


Cartas@amizade.com

Desde há muito tempo, venho recebendo reclamações de amigos, sobretudo baianos. Quando não tratam do meu sumiço das farras e festas da Bahia, se referem à minha total escassez de cartas. Depois que me acostumei com a facilidade do telefone, raramente escrevo umas duas linhas. O poeta Ruy Espinheira Filho, que guarda qualquer correspondência, até bilhete escrito em embrulho de pão, sempre escreve lamentando:

- Quando você não era tão preguiçoso, me escrevia – disse ele numa longa carta. - É respeitável meu arquivo com sua correspondência, mas, claro, de anos atrás.

Já o professor e escritor Valdomiro Santana, não deixa por menos a velha e esfarrapada desculpa da falta de tempo.

- Velho, realmente não dá para comparar carta com telefonema – escreveu. - São papos totalmente diferentes. O da carta atravessa o tempo, o do telefonema, não.

Sinceramente, não tenho nenhum vago motivo para tirar a razão dos dois. O padrinho de meu filho Lucas Lombardi Jatobá, o jornalista e escritor Sílvio Fiorani, conseguiu reconstituir toda a sua infância no interior paulista, nos anos 1950, por meio de cartas trocadas entre sua irmã e o atual marido. Embora morassem próximos na região de Vista Alegre do Alto e pudessem, nas noites escuras, visualizar as luzes das cidades onde moravam, os dois enamorados se correspondiam todos os dias e a jovem moça contou, em centenas de cartas, desde a saudade do amado até detalhes como uma suave febre, o sarampo e o braço (esquerdo) quebrado do irmão mais novo.

Quem pode esquecer a vasta correspondência do escritor paulistano Mário de Andrade? Morto em 1945, aos 51 anos, escreveu sobre tudo o que se imagina e ainda achou tempo para redigir uma pilha de missivas durante sua vida (umas 3.000 calculam-se por baixo). Só para se ter uma ideia, já foram publicados mais de 15 volumes apenas com suas cartas.

"Se um jovem dos confins do Piauí lhe escrevia, contando esperanças literárias, chorando mágoas, pedindo conselhos ou simplesmente livros, Mário de Andrade se absorvia totalmente no problema desse moço desconhecido, pensava nele, imaginava soluções e lhe mandava uma resposta de dez páginas, em que o rapazinho se sentia de repente dignificado, compreendido, consolado, estimulado ou socorrido", disse o professor Antonio Candido, casado com Gilda de Mello e Souza (1919-2005), prima de Mário.

Posso estar errado, mas acho que os bons tempos das cartas estão de volta. Todos os dias, recebo uma, duas ou até três. Não pelas mãos do carteiro, mas via internet. Sinto que as pessoas vão perdendo o medo de se expres¬sar pela palavra escrita e voltam a escrever, agora com a comodidade e a economia advindas com o correio eletrônico. Pouco a pouco, muitas começam a atravessar o espaço e, tam¬bém, o tempo.

Eis aqui uma carta que recebi via e-mail há cerca de cinco anos. Tirei uma cópia e guardo-a com carinho. Reproduzo a palavra por palavra, de acordo com o original:
É curioso escrever para quem não se conhece pessoalmente. Quem te escreve é uma pessoa que foi surpreendida por três coincidências. A primeira está relacionada com o fato de termos o mesmo sobrenome (jatobá), provavelmente temos algum parentesco em nossa árvore genealógica. A segunda por gostarmos de escrever (escrevo, como tantos anônimos no país... brinco de escrever). A terceira é porque somos nascidos no mesmo dia do mês de julho (também faço aniversário em 22 de julho), embora tenha vindo ao mundo alguns anos depois, em 1963.

Permita-me que me apresente, meu nome é Ana Izabel Jatobá de Souza. Atualmente, sou a mais nova professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Sou natural de Mato Grosso do Sul (Ladário, vizinho de Corumbá). O sobrenome Jatobá herdei de minha mãe que pertencia a meu avô (que não sei de onde veio). Souza é sobrenome de meu pai (baiano de Juazeiro). Sou casada, sem filhos e com muitos sonhos. Estou aprendendo a navegar na internet, e por curiosidade digitei a palavra jatobá e, além de muitas árvores e fábricas de móveis, encontrei a tua página pessoal. Fiquei encantada em conhecê-lo e espero que esta carta chegue via correio eletrônico. Isto é, se fizer tudo certo. Inseguranças de principiante.

Sem mais, um abraço solidário das coincidências da vida.
Há tempos não recebo cartas da possível parente distante, mas tenho certeza que nasceu ali uma sólida, longínqua e fraternal amizade. Outra noite, com em muitas outras noites, já pensei, no silêncio do meu apartamento, nas “coincidências da vida” -- e no tempo.



Que coisa é o tempo. Nada me fascina mais (e me perturba) do que o tempo. Quando estamos felizes, mas de uma felicidade sem tamanho, o tempo flui depressa. Anoitece e amanhece e não nos damos conta de que a noite já passou.

Vivência oposta, e também paradoxal, é quando estamos tristes e infelizes. Sentimos um medo vago, difuso, um medo que não sabemos de onde vem, como se fosse acontecer ou já estivesse acontecendo uma desgraça. Então, o tempo é uma tartaruga ou mais lento do que uma tartaruga. Cada minuto é como se fosse feito de chumbo.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração do autor

Livro, Misterioso Livro...

Naquela tiritantemente gélida manhã de julho, Jacinto Pirilo acordou sobressaltado: havia sonhado com um ser vestido elegantemente em tons de verde, que empunhava um livro com uma capa de cor alaranjada com losangos purpúreos. A certa altura o personagem onírico abria o referido livro e de dentro tirava um livro menor, azul com listras vermelhas, e proferia a seguinte frase – “Este livro que está dentro do outro contém tudo que aconteceu, acontece e acontecerá, todas as coisas do universo estão dentro dele, e você jamais imagina que possui ambos ”

Duas coisas intrigavam o nosso protagonista, a primeira era a configuração cromática da capa dos volumes : onde é que ele tinha visto tais cores??? Laranja com polígonos arlequinescos roxos... anil com escarlate listrado… tinha certeza que já vira aquelas estampas anteriormente. Onde… quando… e porquê eram questões que ficavam exigindo respostas que escorriam pelo esquecimento… Outra coisa que intrigava profundamente o nosso amigo era a estória de um livro dentro de um livro: Edgar Allan Poe falava sobre sonhos dentro de sonhos, agora livros dentro de livros… que estória era aquela???

Achando que a questão das cores das capas seria metafórica, Jacinto Pirilo passou a vasculhar sua enorme biblioteca, começou com H.G. Wells… passou a Eça de Queirós… daí a E.E. Cummings… indo para Júlio Cortázar, Emanuel Swedenborg, José Agripino de Paula, G.K. Chesterton, Antoin Artaud, Walt Whitman, Oswald de Andrade, Herman Melville, Cesário Verde, James Joyce, Gustave Flaubert, Guimarães Rosa, Rudyard Kipling, Velimir Khlénnikov, William Blake, William Burroughs, William Faulkner, etc … Mas nada, não conseguia achar sentido em nada.

Leu outros autores, e mais outros e outros e outros… Esgotada a biblioteca, ele desceu até o porão de sua antiga residência no bairro de Campos Elíseos na esperança de encontrar algum tomo esquecido… mas de repente se deparou com um caixote alaranjado com losangos purpúreos e recordou que era o local onde costumava guardar seus brinquedos na infância. Abrindo a caixa encontrou somente um pião de cor azulada com tarjas vermelhas… Sem titubear Jacinto rodou o brinquedo e em seu movimento centrífugo vislumbrou todas as épocas, todos os objetos, sentimentos, paisagens, configurações estrelares, verdades cósmicas e até todos os gols de todas as copas do mundo, enfim tudo , tal qual a visão moribunda do Brás Cubas montado em um rinoceronte ou a do personagem borgiano contemplando o Aleph… Sim, sim, ele vira tudo, tudo, tudo… Até que o pião parou de girar...

Crônica - Cesar Cruz


Meu pai faz reciclagem!

– Não joga no lixo que meu pai faz reciclagem!

Minha filha Michele, há alguns meses, ainda com 4 anos, saiu com essa pra cima da coitada de uma tia, que envergonhada interrompeu no ar a mão que ia largar no lixo uma garrafa PET de refrigerante.

Esses dias estávamos, a Martha e eu, falando a respeito de reciclagem. Ela que, solitária, separa o lixo de casa debaixo do desinteresse do filho adolescente e sob o olhar de esguelha do marido, meu amigo Vagner, que garante que “separar lixo pra reciclagem é dar dinheiro pra capitalista”.

A verdade é que ninguém gosta de mexer com lixo, nem mesmo falar dele. Lixo a gente quer é bem longe! De preferência fechado num saco duplo – pra não pingar chorume no chão da cozinha –, e que o caminhão passe logo e leve aqueles monstros pretos e azuis da frente da nossa casa para o raio que os parta – que preferimos nem saber onde fica.

Pra gente é assim.

Acontece que lixão só é charmoso em novela da Globo. Os aterros sanitários a céu aberto estão à beira de um colapso; são áreas imensas, inutilizadas para a ocupação humana, e que assim ficarão por muitos anos, graças à contaminação de seus solos.

O volume de lixo produzido só na capital paulista cresce cinco vezes mais rápido do que a população. Além da escassez de recursos naturais, urge a necessidade de reaproveitamento de materiais para atender à demanda dessa gente bronzeada, que não para de mostrar seu valor e de se reproduzir: 7 bilhões na última contagem. A coleta seletiva e a reciclagem, se não resolvem todo o problema, por enquanto são a melhor solução que temos.

Comecei a separar o lixo de casa em 1994, o que faz de mim o mais antigo reciclador que conheço. Tudo começou quando fui convidado a assistir a uma palestra e fiquei assustado ao ver surgir na tela uma montagem que punha lado a lado um prédio de cinco andares e uma pilha de lixo da mesma altura, de sei lá quantas mil toneladas. Era a representação do que a cidade de São Paulo, na época, gerava de lixo doméstico em um único dia.

Naquela mesma semana separei num saco meus primeiros recicláveis, e não parei mais. Nesses 18 anos, muita gente aderiu à causa por influência minha. Separar o lixo lá em casa é tão natural que me assusto quando flagro, na casa dos outros, a pessoa misturando papel limpo, uma caixa de leite vazia ou um pote de vidro a restos de comida. Custa passar uma água, deixar escorrendo num canto e depois colocar num saco à parte?

De certa forma custa sim. Eu entendo isso. Quando não se tem certo hábito, passar a tê-lo pede pequenas mudanças na nossa rotina, e só de pensar (tanta coisa que temos pra fazer!) nos dá uma preguiça danada. Mas é mesmo uma mera questão de costume. Para mim hoje é justamente o contrário: me dá uma preguiça enorme imaginar ter que enfiar todas aquelas coisas sólidas e pontudas, que costumo reciclar, dentro do delicado saco de lixo em meio a cascas de frutas, cotonetes e afins.

O Vagner, em certa medida, tem razão de pensar daquele jeito. Afinal, estamos cheios de ver os capitalistas transformarem toda e qualquer boa iniciativa social em dinheiro para encher seus próprios bolsos. Mas ao longo desses 18 anos, descobri que a maioria esmagadora das cooperativas de catadores e recicladores reverte 100% de seus lucros às famílias dos cooperados. Para o capitalista que apoia a iniciativa, sobra só a vantagem de associar sua marca a uma boa causa. O que não é pouco.

E amanhã, amigo, quando você for enfiar no meio do macarrão aquela revista da semana passada, certifique-se que a Michele não está por perto pra te repreender:

– Não joga no lixo que meu pai faz reciclagem!

Conto - José Miranda Filho

Whitepark Bay, by Manson Blair

Encontro de Amigos - Parte 12

Júnior, a pessoa que conhecemos na festa de Arlington, em Dublin, me telefonou nesta manhã dizendo-me que sua esposa Adriane estava esperando bebê para o mês de Fevereiro e que gostariam que estivéssemos presentes no dia do batizado, que seria realizado na segunda quinzena do mês de abril, na Igreja de Saint Patrick, a famosa Catedral de Dublin.

A Catedral de Saint Patrick foi erguida por volta do século V, num local em que São Patrício, fiel seguidor de Jesus Cristo costumava batizar os pagãos convertidos ao catolicismo. Em 1193, o Bispo John Comy ergueu no local uma nova Igreja de Pedra, e hoje ostenta esta maravilha em cujo topo esta a Minot’s Tower. Graças a Sir Benjamin Guiness, (da tradicional cervejaria irlandesa) a Catedral passou por uma ampla restauração. No interior da capela há inúmeros memoriais, o mais famoso, de 1632, foi elaborado por Richard Boyle, Conde de Cork, em homenagem a sua mulher Katherine. Alguns memoriais existentes na parte interna da Catedral são dedicados ao escritor satirista Jonathan Swift, autor da notável obra “As Viagens de Gulliver”. Ao sudoeste da nave se encontram os túmulos de Jonathan Swift e sua esposa, Ester Johnson.

Júnior nos esperava para o batizado do seu filho. Como teríamos uma conferência em Cork, na segunda semana de abril poderíamos prolongar nossa estadia naquela cidade até o mês de maio e assim participar do batismo, que para nós seria uma honra e uma agradável surpresa. Sinal de que a semente brotou em nosso coração e nossa amizade foi sinceramente reconhecida e retribuída pelos amigos de Edward, a quem agradecemos por toda essa trajetória agradabilíssima ocorrida em nossa vida, a partir do momento que o conhecemos em Cork e viajamos juntos para Portugal, Espanha e Itália. Um passeio de quatro dias também estava previsto para Paris, mas devido ao cansaço de minha mulher e exaustão de todos nós, resolvemos abortar o plano e retornamos da Itália, encerrando a viagem.

Tradução - Eduardo Miranda

A Burial at Ornans, painting by Gustave Courbet
Funeal Blues
de W.H. Auden

Parem os relógios, ponham os telefones em silêncio,
Para que o cão não ladre, joguem-lhe um osso suculento,
Calem os pianos e ao rufar de tambores abafados
Tragam o caixão, que já é chegado o momento.

Deixem os aviões circularem no céu
E que escrevam a mensagem "Ele morreu".
Laços de crepe branco no pescoço de pombas em luto,
E que os guardas usem suas luvas negras de veludo.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, meu Leste e Oeste,
Meus dias úteis, fins-de-semana, guia e mestre,
Meu meio-dia, meia-noite, minha conversa e canção;
Pensei que o amor durasse para sempre, mas não.

Estrelas não as quero mais; podem apagá-las,
Que o sol seja desmontado, a lua podem guardá-la
Despeje o oceano e varram longe a floresta;
Pois nada mais vale a pena do que resta.

Funeal Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.

Foreign Word - Carlos Drummond de Andrade

Banksy

by Eduardo Miranda
Elegy 1938

You work without joy for a decrepit world,
where the forms and actions offer no examples.
You practice laboriously universal gestures,
feel heat and cold, lack of money, hunger and sexual desire.

Heroes fill the city parks where you creep
and advocate virtue, renunciation, the cold-blooded, the conception.
At night, if fog, open bronze-made umbrellas
or retire to the volumes of sinister libraries.

You love the night by the power of annihilation it holds
and you know, sleeping, the problems waive you to die.
But the terrible awakening proves the existence of the Great Engine
and restores you, the little one, facing indecipherable palms.

You walk among dead and talk to them about
things from the future and soul & spirit affairs.
The literature ruined your best love moments.
On the phone you wasted long and precious time of seeding.

Haughty heart, you rush to confess your defeat
and defer to another century the collective happiness.
You accept the rain, the war, the unemployment and the unfair distribution
because you cannot, by yourself, blow up the island of Manhattan.

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Releitura - Carlos Drummond de Andrade

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Dedico este poema de Drummond à minha mãezinha, Elza D'Agostini Miranda, que veio ao mundo em 18-04-41, e o deixou em 30-10-2012.
Saudades...

E.M.

Ilustração - Maser


Maser começou a grafitar na Irlanda em 1995 e rapidamente criou buxicho no meio artístico com seu estilo inovativo, letras marcantes, e foto-realismo.


Ensaio - Ronald Augusto

José Weis e o ideal de rejeição de Lenhador de samambaias


Num ensaio muito interessante dedicado ao poema dramático de Mallarmé L’après-midi d’un Fauno (1865-1876) e as sucessivas versões a que foi submetido desde sua primeira recusa para ser encenado, Décio Pignatari aventa a hipótese de que o poeta simbolista concebeu essa aventura criativa como uma “antiestocástica do poema”. Pignatari define assim o processo estocástico: “uma aproximação gradativa a uma mensagem desconhecida, a partir dos dados de um código conhecido”. Outro exemplo fornecido pelo crítico seria o do progressivo ajuste de foco de uma imagem, o movimento de “um desfoque máximo para um foco otimizado.” (1)

Mallarmé respondeu a cada recusa ao poema (cuja recepção crítica censurava como peça obscura e ininteligível) dando-lhe um tratamento sempre mais e mais distante de uma configuração apropriada a um texto encenável. Por uma série de supressões sintáticas e lexicais o poema foi perdendo comunicabilidade dramática e ganhando em elipse e concentração ao nível da melopeia; em suma e, talvez, paradoxalmente, silêncios e lacunas expressivas foram introduzidos em sua linguagem. A cada revisão Mallarmé dava menos eloquência gesticulatória ao poema.

Se evoco a experiência de linguagem do grande simbolista é porque me parece que a escrita poética de José Weis guarda alguma relação com essa lição compositiva que só tem em vista o sucesso estético do poema, mesmo que para isso seja necessário enfrentar o seu fracasso referencial. Sei que José Weis não é um poeta de linhagem mallarmaica, pelo contrário, seu apetite discursivo (que bebe naturalmente da cachaça dos modernistas) é mais pela mundanidade do que pelo abismo da página estéril e branca. Seus poemas se situam numa “zona de interseção entre/ uma autocrítica e sua compaixão”. Para Mallarmé não importa tanto a autocrítica que, para ele, seria decorrência da própria linguagem e sua permanente condição de crise; o poema mallarmaico é crítico e sem compaixão e quem fala através dele não é o poeta, mas a linguagem ela mesma.

Quem fala nos poemas de José Weis? Ele mesmo, mas através de máscaras. Sua compaixão autocrítica passa por filtros irônicos de dicções aprendidas no contato sensível com a tradição, pois “Árdua é a vida de um Fauno/ sem a poesia de Mallarmé/ sem a música de Debussy/ e nem uma ninfa sequer...”. Mas a alusão a essas aparentes carências não vem à tona do verso de Weis sem a marca do fingimento, seus versos avançam em imagens e ritmos coloquiais que se fazem acompanhar da marcação de um ridendo, senha de uma contida metalinguagem a assinalar que suas palavras não devem ser levadas tão a sério.

Afastei-me um pouco do sentido inicial dessa resenha, qual seja, reconhecer no conjunto de poemas Lenhador de samambaias uma aplicada arte de recusas, o que, aliás, já está expresso no poema “Intuição”, o terceiro do livro, que diz: “No caso da recusa/ ser a própria musa/ todo bardo elege,/ com sábia devoção/ seu ideal de rejeição”. Esse traço do percurso poético de José Weis é admirável, isto é, sua escolha por não tornar mais adiposo o acervo imenso dos livros fáceis que se publicam a torto e a direito, porque resolveu concentrar seu esforço reduzindo os seus conjuntos de poemas ao que interessa. Esse escrúpulo de publicar a qualquer custo faz com que a poética de José Weis encontre também o domínio da ética; o esperado livro de José Weis não chegou tarde, não. Chegou íntegro, sem nódoa de barganha com a facilidade ou com o espalhafatoso, afinal, quando assediada, edulcorada e “Encurralada, a palavra escapa/ desaba a pretensão do poeta”.

Com efeito, junto com a admiração de muitos dos seus iguais por sua poesia, a raridade com que essa poesia mesma aparecia ao longo desses anos, talvez causasse, por outro lado, um secreto incômodo. Todos nós sabíamos da existência e da qualidade dessa poesia, entretanto, frente à sua correlata escassez – seu corajoso silêncio vizinho à esterilidade? – quem sabe quantas vezes não nos tenhamos feito a pergunta: mas por que diabos o Zezinho nos oferece tão pouca quantidade dela?

Vinte e cinco anos de estrada e agora José Weis publica Lenhador de samambaias, um livro magro, pouco mais que uma plaquete. Quase trinta anos se dando tanto em troca de tão pouco. O livro tem 68 páginas, incluídas as correspondentes à apresentação de Sidnei Schneider, ao sumário e à epígrafe extraída de Miguel de Cervantes (onde o ego scriptor de José Weis espera conquistar através do trabalho com a linguagem a graça de ser poeta que o céu não lhe quis outorgar). Parece até que o poeta publicou a contragosto ou, com generoso orgulho, se deixou publicar. Para uma estreia de um poeta cinquentenário o “sinal de menos” com que Lenhador de samambaias se honora – se o colocarmos em relação com o perdulário das publicações que o cercam – confirma para mim a imagem de que José Weis conquistou para si a alegria de nos oferecer um livro que vale por todos os dos seus pares mais ansiosos.

(1) CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980, p: 107.

Vídeo - Marina Abramović



Nascida a 30 de novembro de 1946, em Belgrado, Sérvia, Marina Abramovic é uma artista sérvia baseada em Nova Iorque, que começou sua carreira no início de 1970. Ativa por mais de três décadas, ela recentemente começou a descrever-se como a "avó da arte performática". O trabalho de Abramovic explora a relação entre artista e público, os limites do corpo, e as possibilidades da mente.